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Texto crítico de AGNALDO FARIAS - Camila Elis e o caminho da Luz (2025)

A artista não demora mais que um dia para realizar uma pintura. Poderia, como a maioria dos pintores, demorar mais, muito mais, até porque lida com tinta a óleo, propícia a processos lentos, dos que envolvem apagamentos sucessivos, avaliações e arrependimentos de soluções encontradas, pois nem sem sempre se segue em linha reta e é comum que os achados mais evidentes sejam deixados de lado, assim que trazidos à luz. Em pintura, de resto como quase em tudo, avança-se faceando a escuridão. Em Camila o processo não inclui decisões tão radicais como a supressão de passagens, de motivos, o silenciamento: há as veladuras, tema de sua dissertação de mestrado na ECAUSP; a aplicação de camadas tênues, transparentes, cada uma modificando a camada anterior, afundando-a para extratos mais e mais subterrâneos, esbatendo-a, empalidecendo-a, tornando-a quase um rumor, ainda assim, visível. Uma estratégia cara a artista, que prefere a rapidez, optou, lutou por ela, ajustou seu trabalho ao mesmo prazo exíguo, como se a produção de uma tela viesse pronta e acabada como uma pedra aparada no ar ou, como ela escreve a propósito do trabalho artístico, como “uma luz a procura de uma superfície”. Aliás, a artista escreve e bem. A julgar pela qualidade de seu texto, sua passagem pela academia não a afetou, tampouco sua fina capacidade de efetuar as associações que impulsionam seu trabalho. São muitas e variadas. Como conta em seu texto de apresentação -Argumento- a essa mostra, um dos pontos de partida foi o encontro com o Morte em Veneza, de Thomas Mann, uma edição antiga e nunca lida mas que durante anos ela, em virtude da sua capa azul clara, conservou no alto de uma cômoda porque caía bem em companhia de um conjunto de objetos, uma dessas coleções organizadas a partir de encontros fortuitos que, desconfiamos, devem significar alguma coisa embora não saibamos ao certo o que. Vencendo a inercia do azul claro que a mantinha na atmosfera, a artista, agora em sua casa nova, abriu o livro e finalmente começou a lê-lo, sendo arrebatada pelo primeiro parágrafo do capítulo quatro, a descrição da passagem de um dia, um único dia, do sol a pino à noite espessa e fria. Amante das coisas e das palavras, a artista saiu do texto e dirigiu-se à pintura. Empenhou-se em traduzir. Traduzir? Segundo o poeta Octavio Paz, coisas e palavras sangram pela mesma ferida. Sob esse ponto de vista seria a pintura a expressão desse sangramento? O fechamento do leque de um dia encontraria seu símile na pintura realizada numa única sessão?

 

O título dessa exposição, por sua vez, chega também da literatura, da mitologia grega, remonta ao nascimento da Via Láctea, ao momento em que o poderoso e imprudente Zeus, desejoso de ampliar os poderes de seu filho Hercules, nascido de sua relação com a mortal Alcmena, levou-o ao seio de sua esposa adormecida, Hera, deusa do casamento e ciumenta das sucessivas escapadas de seu marido, para que ela amamentasse o bastardo garantindo assim sua imortalidade. A gula do bebê levou-o a morder o bico do seio da deusa que acordou e, surpreendida e furiosa, repeliu-o, esguichando o leite pelo céu, formando o “caminho do leite” ou a galáxia. Representando a cena, Pedro Paulo Rubens, o grande mestre do barroco flamengo, a exemplo do que havia feito Tintoretto décadas antes, não dá a deusa mostras da repulsa que ela, vingativa, devotaria ao herói por toda a vida dele. Concentra-se na brancura de seu corpo sob o fundo escuro do céu, fonte dos finos jorros de leite, as gotículas que comporiam a trilha luminosa de estrelas onde o sistema solar está abrigado.

 

Nix (2025, óleo sobre tela, 136 x 100 cm), contrasta com a claridade das outras pinturas trazidas para a exposição. Coerente com seu título, Nix, juntamente com Érebro, compreende as trevas profundas; deusa da noite, austera, temida até mesmo por Zeus, e, segundo Hesíodo em sua Teogonia, nascida do Caos, o desbordado vazio que precedeu a criação do universo, também dela nasceu a luz radiante, Éter e Hemera. A tela encarna a escuridão onde aflora a luz, uma síntese entre a fulguração do leite, alimento primordial espargido por Hera fendendo a escuridão espessa. Não obstante sua admirável cultura pictórica, seu interesse particular pelo gênero Natureza Morta voltado a captura do instante, ao coágulo do tempo, as pinturas de Camila Elis não se encaminham rumo à figuração, na representação mais ou menos fiel das coisas, detendo-se antes, na linguagem em estado larvar, ainda sem a estabilidade dos vocábulos e significados correspondentes. E estrutura vertical de Nix é reiterada por feixes brancos semicirculares como que empilhados, a maneira de uma flor dotada de pétalas esguias, estiradas, situados à esquerda da tela, enquanto do lado direito despontam pinceladas azuis claras mais curtas. As duas cores são secundadas por vermelhos crepitantes, variações de marrons, uma mancha azul profunda e brilhante, cores que perturbam o fundo escuro, tumultuam-no.

 

O vento que me acha o cabelo

Fernando Pessoa, in Tabacaria

 

Cores vencendo a escuridão ou habitando-a, não importa, é um tema caro aos pintores, razão suficiente para a artista insistir nesse caminho. Não bastassem os títulos, Éter, Éter e a luz, Um brilho esbranquiçado e sedoso, Wainting for the stars aligne, todas telas recentes, realizadas neste ano, com formato próximos a 150 x 150 cm, versam sobre a luz, a transparência, a presença de forças sutis, discretas, como a passagem do vento desalinhando os cabelos, fazendo dançar as cortinas, os raios de sol filtrados pelas copas das árvores ou momentaneamente interrompidos pelo trânsito lento das nuvens se interpondo entre eles e o chão.

 

As pinturas que compõem essa exposição demonstram o talento da artista em expandir a luz em nuances delicadas, gradações do branco em direção ao creme e dele ao marrom, diferenças tonais que mesmo quando contrastantes, possuem qualidade difusa que lhes garante uma aura de indeterminação, como se flutuassem ou em queda suave. São pinturas protagonizadas por gestos espichados, longos e sensuais, como que abandonados aos livres impulsos do corpo, da mão que empunha o pincel. A flexibilidade dos gestos atinge uma nova versão nos desenhos reunidos sob o título de Memento mori, a expressão latina realçada pelo gênero da Natureza morta e que significa “lembre-se da morte”. A tentativa de captura do viço das plantas a partir de gestos intensos e mais curtos confinam com a antecipação de suas mortes; sob fundo escuro ou claro os gestos vão conduzindo o grafite para soluções onde os limites das folhas se desfibram, tornando-as fulgurações límpidas e efêmeras. De onde vêm as luzes, para onde vão quando submergem nas sombras?

 

Agnaldo Farias

Texto para exposição Via Láctea ,  4.10.2025 - 22.11.2025, Galeria Mamute de São Paulo

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